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Indígena, por favor!

Em um determinado espaço de debates, recentemente, surgiu a pergunta relacionada aos porquês de nos dias atuais passar-se a usar indígenas e não mais índios toda vez que formos nos referir aos indivíduos pertencentes aos povos originários. Aceito o desafio na busca de respostas a tal inquirição, vamos então a algumas análises.

Quando da chegada do colonizador, em 1500, às terras já habitadas pelos povos originários há milhares de anos, os que por aqui já se encontravam foram chamados de índios. Segundo os exploradores que pisavam os pés pela primeira vez em solo tupiniquim, o termo foi usado pelo fato deles terem confundido a chegada ao Brasil com a chegada às Índias Orientais.

Desde então, a palavra índio (ou índios) passou a ser relacionada a todos aqueles que fizessem parte dos milhares de povos que já moravam nas Américas bem antes da colonização opressora e destrutiva imposta nestas terras.

Já a palavra indígena provém do idioma latim, sendo composta de indu (dentro) e geno (nascer), ou seja, no uso desse termo, expressa-se que cada componente dos povos originários, não só do Brasil, mas também de toda a América, é “natural da terra, o nativo, aquele que é originário da terra”.

Esse uso, na verdade, não só expressa a origem e/ou a ancestralidade dos povos indígenas, como também toda a sua diversidade em termos de culturas, saberes, histórias, vivências, religiões e línguas. Aqui é um daqueles casos nos quais há o poder da palavra.

Em tempos mais recentes, aos poucos, o Brasil começa a se referir, com maior intensidade, aos indivíduos pertencentes a cada um dos seus 305 povos originários, por meio do uso do termo indígena/s. Ainda que muitos insistam, em grande parte de forma deliberada e intencional, na continuidade do uso da palavra índio para se referir a cada um dos componentes desses povos, muita coisa mudou nos últimos anos, em termos de mais conscientização e reflexão nas formas como o país deva tratar os seus indígenas.

Temos, por exemplo, hoje não mais o 19 de abril como o dia do índio. Esse dia agora é conhecido, inclusive com força de Lei Federal, mais precisamente a 14.402/2022, como o Dia dos Povos Indígenas. Seguindo-se as mudanças para o melhor nesse sentido, o órgão federal indigenista Funai passou a ter uma nova nomenclatura: Fundação Nacional dos Povos Indígenas.

O país que, até o início de 2023, conhecia a Funai como Fundação Nacional do Índio, começou a entender mais um pouco que os 305 povos indígenas que restaram por aqui, após mais de 500 anos de destruição e perseguição opressora, devem ser alcançados, em suas particularidades e diversidade, com respeito e dignidade através de políticas de estado.

As formas rasas e/ou marginalizadas como, por muitas vezes, no passado, foram tratados os indígenas por políticas de governos que destilavam preconceito e discriminação, não raras as vezes, estavam atreladas ao olhar que uma grande maioria tinha direcionada ao índio, ou seja, aquele que era o grande obstáculo ao progresso e ao desenvolvimento da nação brasileira.

Os povos originários e/ou indígenas eram e ainda são compostos por homens e mulheres que expressavam/am sua fé e suas crenças, na maior parte das vezes, de um modo totalmente diferente daqueles relacionados às religiões trazidas por Cabral ou pelos imigrantes europeus e estadunidenses. Inclusive neste aspecto particular da espiritualidade e na visão direcionada à/as divindade/s, o Brasil tem muito a aprender com os indígenas, visto que são muitas as faces daquilo que creem, expressam e ensinam, quando o assunto é fé.

Um outro fato contribui enormemente para que o país conhecesse mais a respeito dos povos originários, a chegada da Lei Federal 11.645, de 10 março de 2008, a qual trouxe a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura dos povos indígenas nas escolas de ensino fundamental e médio, públicas e particulares, em todo o Brasil.

Mesmo sendo em alguns locais o cumprimento dessa lei algo ainda tímido, um número maior de pessoas passou a conhecer mais um pouco a sobre a história de existência e resistência dos povos originários. Alunos, professores, funcionários, pais, a comunidade escolar como um todo, tiveram sua visão ampliada com relação aos indígenas, indo além dos estereótipos que por muito tempo foram difundidos toda vez que a palavra índio era usada com referência a esses povos.

Quando usada a palavra indígenas ou povos originários faz-se a lembrança da realidade de não apenas uma língua falada hoje pelos indígenas do Brasil. Os 274 idiomas indígenas hoje vivos no país são uma das expressões que demonstram a riqueza da diversidade desses povos em solo nacional, mesmo com todas as tentativas, ao longo de séculos, de apagamento total dessas línguas infligidas pelos colonizadores.

Quando pensamos a realidade do estado de Mato Grosso do Sul, com respeito às populações indígenas, não são poucos aqueles que entendem ser apenas um povo originário existente por aqui. Quando me apresento, por exemplo, como pertencente ao povo Terena, várias pessoas me perguntam se sei falar o Guarani, em uma clara confusão que o sul-mato-grossense ainda faz a respeito de quem são os indígenas em nosso estado, sendo o uso do termo índio uma das causas dessas desinformações com as quais, constantemente, deparamo-nos.

Então, de forma bem didática, digo que meu povo fala o terena e que, além de nosso povo, temos hoje no Mato Grosso do Sul a presença de mais oito povos, o Guarani Kaiowá, o Guarani Ñandeva, o Kamba, o Kinikinau, o Kadiwéu, o Guató, o Ofaié e o Atikum.

Por fim, nunca é demais reforçarmos aquilo que condiz com a realidade, no caso, conscientizar mais e mais o Brasil que o uso de uma determinada palavra, no caso, indígena não tem a ver com um capricho da língua portuguesa ou com uma bandeira partidária ou ideológica, mas sim um olhar direcionado a toda a riqueza cultural e histórica dos povos originários destas terras.

Basta aos anos e anos nos quais tentaram nos reduzir a quase nada por meio de uma palavra. Pode parecer muito mais fácil fugir da busca de uma resposta (ou respostas) à indagação do início do texto e continuar-se no uso do termo que, por anos, o país usou toda vez que se direcionava a nós. Respondida a pergunta, portanto, a partir de agora, indígena, por favor, toda vez que a mim se referir!

(*) Kleber Gomes é professor na Rede Municipal de Ensino de Campo Grande/MS e mestrando no PROFHISTÓRIA da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

Fotos: Arquivo pessoal

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